O poder ancestral feminino, conferido à mulher, na tradição cultural africano-brasileira insurge, explícita ou implicitamente, na produção poético musical afro-brasileira. Para explicar isso, inicia-se este tópico, analisando um clássico, o chorinho Carinhoso, de Pixinguinha. Nos versos conhecidíssimos, o poeta, enamorado, canta sua paixão e a fuga - livre exercício da vontade da mulher: "Meu coração não sei porquê / Bate feliz quando te vê / E os meus olhos ficam sorrindo / E pelas ruas vão te seguindo / Mas mesmo assim foges de mim".
A mulher, por mais amada que seja, não está à disposição do homem. Em Para me livrar do mal, de Ismael Silva e Noel Rosa, os autores cantam o que pode a mulher na relação amorosa com o parceiro, transformando em martírio o que deveria ser o gozo afetivo e sexual.
No canto, os poetas (narradores/destinadores) parecem falar à mulher, à parceira (destinatária/ narratária): são usados verbos no presente do indicativo e na primeira pessoa do singular e a invocação da outra pelo vocativo você: "Estou vivendo com você / Vou largar você de mão / Com razão / Para me livrar do mal / Supliquei / Pra você se endireitar".
Trata-se de queixa aberta sobre o comportamento (des) amoroso da amada, agir destrutivo da mulher que leva o homem uma decisão: abandonar a amada, invocando "razão para livrar-se do mal". No jogo duro dos amantes em conflito, não adiantou a súplica humilde para a mulher "se endireitar", cabendo ao amante, ao homem, apenas se "livrar do mal".
Esse mesmo conflito, poder da mulher versus poder do homem, aparece em Uma Jura Que Fiz, samba, de 1932, em parceria entre Ismael Silva, Francisco Alves e Noel Rosa.
Dalmir Francisco
Comments